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CORPOS BISSEXUAIS

Importante agente na luta por direitos e no rompimento com a monossexualidade, a bissexualidade continua sendo alvo constante de preconceito dentro e fora do universo LGBTQ+.

“O pessoal acha que somos 50% uma coisa e 50% outra, quando, na verdade, não. Não seguimos nenhum padrão, seja não performando heteronormatividade enquanto se relaciona com pessoas do mesmo gênero ou não performando monossexualidade, uma característica comum entre heterossexuais e homossexuais”,

relata de Vinício Lima 

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Transitando por um espaço socialmente negado por parte considerável da comunidade gay, homens e mulheres bissexuais, cis ou transgêneros, sempre marcharam lado a lado com a população LGBTQ+. Sobretudo, nas primeiras grandes movimentações que marcaram a história, como a Revolta de Stonewall e, logo em seguida, na primeira Parada do Orgulho LGBT onde ativistas bissexuais, como Brenda Howard, foram vanguarda da manifestação em 1969. Ou, anos antes, com Donny The Punk, responsável pela formação do primeiro grupo LGBT no campus da Columbia University, em 1966.

 

Contudo, apesar da participação efetiva dentro dos movimentos, indivíduos bissexuais passaram por um processo histórico de apagamento, sendo colocados, quase sempre, na divisão binária entre heterossexual ou homossexual. Um dos motivos para esta segregação, ainda atual, era a crença de que o grupo poderia utilizar “parte” de seu privilégio heterossexual, mais conhecido como “passabilidade”, para fugir de preconceitos e violências.

 

Por isso, somente na década de 1970, surgiram não só organizações específicas para reconhecer e afirmar a bissexualidade, mas celebridades, como David Bowie e Elton John, responsáveis por colocar o assunto nas pautas de cultura pop. Entre as importantes organizações, está a criação do Grupo Nacional de Libertação e Fórum Bissexual (tradução livre para The National Bisexual Liberation Group and Bisexual Forum), formado em Nova Iorque, em 1975, e, um ano depois, do Centro Bissexual de São Francisco (San Francisco Bisexual Center), primeira instituição assumidamente bissexual no mundo. 

 

Em consequência do apagamento, há um significativo atraso na produção literária e científica dos grupos bissexuais, que, somente em 1990, presenciaram o surgimento de grandes autoras como Loraine Hutchins, Lani Kaahumanu e Elizabeth Reba Weise. No Brasil, o desconhecimento foi ainda maior e o acesso traduzido a essa produção literária é, até hoje, escasso. A primeira parada LGBT de São Paulo, por exemplo, aconteceu em 1997, mas grande parte de suas pautas eram voltadas para as demandas de homens brancos homossexuais. Não à toa, somente em 2014, a primeira ONG bissexual surgiu em território brasileiro, a MovBi – Movimento de Bissexuais

 

O resultado dessa invisibilização não está somente no cotidiano de quem enfrenta a desvalorização de suas vivências através de “piadas” comumente ligadas às palavras “indecisa” e/ou “promíscua”, mas nas estáticas que comprovam a descriminalização e deslegitimação. Segundo pesquisa feita com milhares de adolescentes LGBTs americanos pela Human Right’s Campaign Foundation, jovens bissexuais, além de sofrerem com o preconceito de heterossexuais e homossexuais, enfrentam problemas comuns a comunidade gay e lésbica, como o processo de “saída do armário” e um nível menor de aceitação familiar.

David Bowie foi respnsável por uma revolução sexal

Na década de 1970, David Bowie

foi um dos responsáveis por uma verdadeira revolução sexual.

No que se refere às mulheres bissexuais, as estatísticas apontam números ainda mais assustadores. Segundo estudo da Escola de Higiene e Medicina Tropical de Londres, mulheres bissexuais têm 64% mais chances de enfrentar desordens alimentares, 37% mais de automutilação e 26% mais de depressão em comparação às mulheres lésbicas. Mas se a bifobia existe, de fato, por que ainda é vista como chacota por parte da comunidade gay?

 

Para Nikki Sullivan, professora e autora de diversos estudos em teoria queer,  a binariedade normativa, responsável por catalogar o mundo em heterossexual e homossexual faz com que sujeitos bissexuais sofram com a pressão social, de ambos os lados, para se “normatizarem”. Essa binariedade é a mesma que separa o mundo entre homens e mulheres e impede a ascensão social de transexuais não binários. Até mesmo o termo “bissexual”, cunhado no fim do século XIX, está associado a probabilidade biológica de um organismo em se tornar macho ou fêmea.

 

Certamente, a manutenção dessas estruturas é crucial para a sistematização de uma sociedade patriarcal. Já que a bissexualidade questiona a monossexualidade e pode ser um importante ponto de partida para discutir a intersexualidade.

Entrevista

Levando as questões acima em consideração,

convidamos duas pessoas bissexuais para compartilharem suas vivências. 

Paula Mascarenhas / 33 anos / Formada em Letras

1.  Quando você se entendeu bissexual? Como foi o processo? Houve preconceito? 


Paula: A primeira vez que questionei minha sexualidade foi aos 24 anos, porque até então só me senti atraída por homens. Em 2011, conheci uma menina e me apaixonei por ela, a partir disso fui descobrindo essa minha nova atração. Para mim, que sempre tive amigos gays e convivi no meio LGBT, sempre foi muito tranquilo gostar de pessoas independente do sexo, sabe? Meus melhores amigos são gays e isso é anterior a descoberta da bissexualidade. Mas, dentro de casa, foi muito difícil, porque minha família sempre me entendeu como heterossexual e assumir foi complicado. Principalmente para minha mãe que não aceitou durante vários anos meu relacionamento com outra mulher... A gente também demora pra se entender, entender o processo, porque a pressão social e familiar é muito forte. Tive amigas heterossexuais que deixaram de falar comigo porque não compreenderam meu namoro. Mas, quando entendi que o amor não é errado e que não interessa a ninguém com quem você está se relacionando, assumi ainda mais a postura de andar de mãos dadas na rua, de me expor, porque muitas pessoas ainda tem medo.

2. O que você mais escuta das pessoas (sobre o assunto) que mais te chama atenção?

Existem vários tabus sobre o assunto. Pessoas acham que bissexuais estão em cima do muro, que vão voltar atrás, que estão passando por uma fase. Ouvi das minhas amigas que eu estava infeliz com homens, por isso buscava mulheres. Mas o maior julgamento é a inconstância de não ser "nem lá", "nem cá", e esses rótulos são as coisas que mais me incomodam. Tanto que passei sete anos casada com uma mulher e agora estou namorando com homens, então sofri preconceito quando me assumi lésbica e, hoje em dia, por “estar heterossexual”, porque amigas lésbicas ficam questionando, mudam a amizade e você vê que elas não estão felizes com sua escolha, entende? Isso eu acho o mais horrível de tudo. Enquanto LGBT precisamos lutar pelo rompimento desses rótulos, esses enquadramentos em caixas. Esse discurso vindo de pessoas gays e lésbicas me deixa muito sentida.

 

A coisa mais interessante da bissexualidade é

justamente o que as pessoas mais desprezam: a

característica de ser mutável. 

 

3. Como você enxerga hoje a bissexualidade na contemporaneidade; digo em relação a como se vem abordando na mídia, nas redes sociais

Cresceu muito, estamos falando mais sobre a sexualidade em geral, dialogando mais. As redes sociais e mídias tradicionais estão buscando essas pautas, porque tem muita gente se identificando e estamos em um movimento contínuo. Essa geração se assume mais, não tem medo de beijar nas ruas, de andar de mãos dadas, isso também é uma postura que traz reflexão.

 

4. Como é ser uma mulher bissexual e quais as principais diferenças em relação aos homens bissexuais?

Quando você fala para homens héteros que gosta de mulher, eles acham que vai rolar um Ménage à Trois. Ele acha que vai tirar proveito de alguma forma. Quanto aos homens bissexuais, as pessoas costumam ter preconceito, tendem a pensar que os homens não podem ser bissexuais. Eles são estereotipados e isso, do homem só poder ser heterossexual ou homossexual, é machismo, parte de um discurso, socialmente construído.

 

5. Algumas pessoas LGBTQ falam da bissexualidade como se houvesse algum tipo de privilégio em relação as outras sexualidades. O que você acha disso? 

Nunca tinha ouvido falar de privilégio. Pra mim, é sempre visto como algo negativo. Também tem aquelas baboseiras de "se você está casada com um homem, ele vai sentir duas vezes mais ciúmes" ou o típico questionamento "você gosta mais do sexo com homem ou com mulher?". Acredito também que todas as pessoas têm uma tendência bissexual - que, claro, está restrita, protegida devidamente pelo inconsciente. 

 

8. Que tipos de discussões faltam para tratar do assunto?

Há avanços, e a discussão precisa sempre continuar. Principalmente dentro dessa situação política e ideológica na qual estamos vivendo. Independente das diferenças, essas fronteiras devem ser diluídas. Precisamos nos expor, dialogar, principalmente nas redes sociais, nesse microfone que oferece mais possibilidades de falar, se assumir, ter opiniões. Falta discutir e trazer esses tabus, além de ter representações midiáticas, porque são raras.

Vinício Lima, 22 anos / Designer de experiência do usuário

1.  Quando você se entendeu bissexual? Como foi o processo? Houve preconceito? 
8. Que tipos de discussões faltam para tratar do assunto?

Desde cedo, entendi que achava todo mundo bonito e quando entrei na adolescência, entre 13 e 14 anos, comecei a ter interesse por pessoas de todos os gêneros. Para mim, foi algo bem orgânico, porque, lá em casa, já tinha meu irmão gay. Então o processo de auto aceitação foi natural. Ainda assim, tive problemas com minha mãe. Quando dizia que ia sair com algum amigo, por exemplo, eu sentia que ela ficava com pé atrás. Então sofri um nível de opressão dentro de casa que me fez não me identificar como bissexual para a minha mãe até pouco tempo. 

2. O que você mais escuta das pessoas (sobre o assunto) que mais te chama atenção?

 

Escuto muito aquela piadinha de "Bi de balada", ou seja, a pessoa que só fica com pessoas do mesmo gênero quando tá bêbado. Também vejo muita gente falando que pessoas bissexuais não sofrem preconceito, bifobia, porque a gente tem um grau de passabilidade hétero quando nos relacionamos com alguém do mesmo gênero. Escuto que somos indecisos e, mais relacionado a minha experiencia, que não sou bi de verdade, pois estou num relacionamento heterossexual, namoro com uma menina. Então o pessoal deslegitima minha sexualidade.

3. Como você enxerga hoje a bissexualidade na contemporaneidade; digo em relação a como se vem abordando na mídia, nas redes sociais

Acho que ainda estamos bem invisibilizados,

muita coisa que a gente vê é piadinha. Precisamos de mais espaço na mídia

e mais notoriedade na comunidade. Sinto que as pessoas não se

preocupam em entender e respeitar a bissexualidade. 

 

4. Como você enxerga a bissexualidade no universo LGBTQ+, há preconceitos, apagamentos, diálogos com outras as siglas?

É complicado, porque sofremos com um apagamento. É como se a gente tivesse meio convicto de alguma coisa, é metade hétero, metade homo. Termina que a gente não segue nenhum padrão especifico, né? O pessoal acha que somos 50% uma coisa e 50% outra, quando, na verdade, não. Não seguimos nenhum padrão, seja não performando heteronormatividade enquanto se relaciona com pessoas do mesmo gênero ou não performando monossexualidade, uma característica comum entre heterossexuais e homossexuais. A galera não se preocupa muito com a gente por causa desse grau de passabilidade, eles acham que a gente consegue desviar de toda descriminalização. 

5. Como é ser um homem bissexual e quais as principais diferenças em relação as mulheres bissexuais?

Na minha opinião, ser um homem bissexual é menos perigoso. Porque a gente sabe que o gênero implica diretamente no grau de opressão que se sofre no cotidiano. Além do mais por ser uma pessoa LGBTQ. Então as mulheres bissexuais sofrem ainda mais preconceito e fetichização.

6. Algumas pessoas LGBTQ falam da bissexualidade como se houvesse algum tipo de privilégio em relação as outras sexualidades. O que você acha disso? 

Privilégio só se for no sentido de que podemos beijar quem a gente achar bonito e, claro, se a pessoa quiser.  O que acontece é que muita gente fala que ser bi é privilégio por causa do grau de passibilidade. Eu até entendo, mas, ainda assim, se a gente “utilizar” essa passabilidade, acaba se invisibilizando, não é? Apagando nossa identidade para tentar fugir de alguns preconceitos.

O que fica no ar é: até quando precisamos

forjar nossa sexualidade para ter um falso respeito?

 

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Maculinidades Bissexuais

 

No universo LGBTQ+, a invisibilização da bissexualidade não só afeta instâncias de sociabilidade, como também a produção teórica acerca do tema. São encontradas poucas pesquisas acadêmicas, principalmente em português. Nesse vácuo, o pesquisador pernambucano Ismar Inácio, doutor em Linguística, Mestre em Estudos de Linguagem, com graduações em Letras e Pedagogia, tem um extensa lista de artigos e textos acadêmicos que perscrutam pela linguística, sexualidade e perspectiva queer. Suas principais produções dão luz a masculinidade bissexual – para além da teoria – através também da pesquisa de campo.

 

Sua tese de Doutorado, A construção discursiva de masculinidades bissexuais: um estudo em linguística Queer, é talvez uma das principais fontes, em português, sobre o tema. Por se debruçar em teorias da linguística, o pesquisador congrega um campo de significações extensos a questões acerca da bissexualidade; analisando desde um apanhado de capas da revista Veja até, por exemplo, conversas de chats no Uol.

 

O interesse sobre o tema e a pesquisa em específico, conta ele, surge com um dos seus primeiros contatos com o computador. "Na época, vivia em uma pequena cidade do Mato Grosso. A Internet era discada, e o provedor era o UOL. Passei a acessar e a navegar pelo mundo virtual e deparei com as salas de bate-papo, na tentativa de conversar com outras pessoas, visto que era o meio mais viável, de, estando naquela cidade, estabelecer amizades. Mas logo percebi que os interesses, naqueles espaços reservados para conversas, não estavam restritos simplesmente à amizade, ou mesmo não a tinham como foco. Era um interesse sexual. Indo mais, era um interesse sexual entre homens. Eram homens que estavam ali com interesses em “conversar” com outros homens, estavam interessados em manter relações sexuais", conta.

A problemática era para mim nova porque nunca

tinha pensando sobre o homem pela perspectiva de que ser homem

pudesse causar alguma angústia.

O olhar para a construção de termos veio em seguida: o homem "gilete", relembra. "O senso comum dominante na época sempre falou e sobre o qual eu tinha um certo saber, aquele homem que “corta dos dois lados. Esse foi meu primeiro encontro com o tema da masculinidade bissexual".

No seu artigo introduzido por esses seus relatos, Ismar navega pela construção semântica da bissexualidade nos vácuos deixados por capas da revista Veja. Em destaque, uma delas que forja o termo "Novo Homem". "Essa capa trouxe para mim uma discussão nova, pois a revista mencionava que a obrigação de manter a imagem de super-herói, sinônimo de força e poder, estava provocando uma angústia masculina", diz.

A partir da sua experiência nos chats e da suas próprias vivências, Ismar perscruta não só por um arcabouço teórico da prática social, mas também sexual. Essa dualidade também encarrega um valor histórico fundamental a sua tese (que serve até como registro histórico dessas práticas no meio digital).

"A problemática era para mim nova porque nunca tinha pensando sobre o homem pela perspectiva de que ser homem, tal qual fomos formados, pudesse causar alguma angústia, visto que sempre fui discriminado por não ser o sinônimo de virilidade. Ao refletir sobre essa angústia masculina, comecei a relacioná-la com o comportamento dos homens nos chats, e iniciei uma inferência de que, se outros comportamentos estavam sendo possíveis aos homens, esses não estavam apenas relacionados à segurança, à força e ao poder, mas também, possivelmente, a novos comportamentos sexuais", explica.

É dentro dessa perspectiva que Ismar compila numerosas conversas em chats; analisando desde os nicknames utilizados, gírias e nuances de cada conversa. Cada item amplifica seu sentido semântico, acrescentando ao debate da bissexualidade (aqui, especificamente, masculina) novas formas de abordagem e estudo. "A Análise Crítica do Discurso é um arcabouço teórico-metodológico para os estudos críticos da linguagem; é uma corrente teórica que parte da premissa de que todas as relações sociais (nas mais diversas práticas) se dão a partir de textos que produzem determinados efeitos de sentido", analisa.

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